Não há nada mais afectado do que querer parecer galhardo
Por Luis Pedro Nunes
Há dias, numa discussão sobre “revistas de homem moderno” e a inspiração que estas ainda vão buscar a arquétipos, chegámos à conclusão que os modelos-base de uma certa masculinidade, associada a um estilo próprio, continuam a ser os mesmos de há 10, 20 ou 40 anos: Paul Newman, Steve McQueen, Cary Grant e noutras pistas o Mastroianni e o Michael Caine. Há uma certeza: a de que dificilmente Justin Timberlake ou Kanye West irão influenciar a moda, design, e estilos de vida dentro de meio século (é apenas uma aposta, não estarei cá para ver), mas é provável que ainda se vá olhar para as imagens de McQueen. Ora, para além das qualidades artísticas e estéticas evidentes, o que é que estes homens têm? Como é que, entre milhares de milhões de homens e biliões de imagens que povoam a nossa mente (e dos “decisores”), emergem sempre os mesmos, que continuam a ter uma influência desproporcionada? A resposta está no facto de, para além de serem super estrelas, e terem um ar extraordinariamente cool eles parecerem que não davam dois minutos do seu tempo a pensar no que eram e no que vestiam (uma grande mentira: davam e muito, ao mais ínfimo detalhe). Era-lhes inato, natural. Um artigo de uma qualquer revista que já perdi remetia para um conceito renascentista de sprezzatura. Ao que acrescento o nonchalant que tem tradução portuguesa que não serve (não é ‘descontraído’). Acho que, mais do que para o “estilo”, precisamos destes conceitos para a vida. Nós. Os que estamos vivos.
Não me arrisco a definir o termo em português. Só existe em italiano e foi criado há mais de 500 anos por Baldessar Castiglione no seu “Livro do Cortesão” (1528), que iria influenciar as cortes de toda a Europa. E a sprezzatura que os homens italianos acabariam por absorver naturalmente e que está, efetivamente, só ao alcance de alguns, é um esforço que não se vê, um descuido cuidado, uma falsa naturalidade tão estudada que fica mesmo natural. Ouçamo-lo que vale a pena:
(…) “Vede como um cavaleiro tem má graça quando se esforça por ir muito esticado sobre a sela e, como nós costumamos dizer, à veneziana, em comparação com o outro, que parece nem pensar nisso e que monta a cavalo tão à vontade e seguro como se estivesse a pé. (…) Não há nada mais afectado do que querer parecer galhardo. O mesmo acontece com qualquer exercício, ou melhor, em tudo o que se possa fazer ou dizer.”
Diz-se que agora se abusa da sprezzatura (e do seu contrário: a afectação, que já tem termo portuga). Que por vezes a sprezzatura é tanta que parece bandalhice. Hoje um Clooney tem uma equipa a trabalhar-lhe a imagem e não o deixa vestir “o que quer” (escolhe-lhe a roupa que pode usar e faz uma seleção para a “vida civil” tendo em conta patrocínios). Já McQueen decidia meticulosamente e pessoalmente tudo o que usava. Os jeans eram feitos à medida para lhe realçar a bunda. No filme “A Grande Evasão”, se bem que se passasse na II Guerra, exigiu que as suas calças caquis tivessem as proporções que eram moda nos anos 60 e toda a roupa que usava em cada sessão fotográfica era especialmente escolhida. Sprezzatura, ok? Não há “más imagens dele”. Mas McQueen teria a sprezzatura para o fazer com outra “naturalidade”. Porque foi dos atores mais “auto-dirigidos” fora de cena para um palco global. Mesmo hoje dificilmente seria apanhado a comprar leite num supermercado de chinelos sem estar encenado para não parecer aquilo quer ele queria que parecesse: um terno ato familiar que compensasse o mau pai que era. Os ícones dos anos 60 tinham essa rebeldia que negavam a compostura. Paul Newman é uma das mais elaboradas construções: um alinhadinho miúdo dos subúrbios que se transforma em rebelde, quarentão que fora do set tem sempre algo de nonchalant.
E há as míticas histórias de Mastroianni das imensas malas de fatos (não italianos) que transportava para depois aparecer com aquele ar de quem não está nem aí. Foi ele o criador do estilo “Côte d’Azur”, o lado informal dos homens formais que infelizmente ainda sobrevive em muito velho canastrão nas nossas praias da moda.
Não deve ser por acaso que a língua portuguesa não tem os equivalentes para sprezzatura e nonchalant. Que devia servir para a Vida acima de tudo:
(…) considero que há uma regra muito universal, que me parece valer mais do que todas as outras para todas as coisas humanas que se fazem ou que se dizem, a que é necessário fugir, tanto quanto possível, como um escolho muito acerado e perigoso, da afectação e, talvez para utilizar uma palavra nova, dar provas em todas as coisas de uma certa sprezzatura, que esconda a arte e mostre que o que se faz e diz surgiu sem dificuldade e quase sem pensar nisso. É daí, creio, que deriva sobretudo a graça, porque cada uma sabe a dificuldade das coisas raras e bem feitas, ainda que a facilidade nelas cause uma grande admiração; e, pelo contrário, fazer esforços e, como se diz, puxar pelos cabelos, dá muita desgraça, e faz com que uma coisa, por maior que seja, não mereça estima. Por isso, pode dizer-se que a verdadeira arte é a que parece não ser arte; e, acima de tudo, deve-se fazer um esforço para a esconder, porque, se é descoberta, retira totalmente o crédito e faz com que o homem seja pouco estimado (…)
E quem disser que é fácil é um tolo afetado.
Por Luis Pedro Nunes
*Texto original de 2016 publico na Revista do EXPRESSO