‘Não há morte em Veneza’ por Luis Pedro Nunes

Veneza por Luis Pedro Nunes

Um inesperado momento para visitar cidades que estavam esmagadas pelo turismo. Ainda sem americanos ou asiáticos ou negacionistas. Só instagramers.

Faz para aí uns dois anos que assinalei com muita pena e por descuido prepotente que nunca iria a Veneza. Sabe-se as tolices que as pessoas escrevem em crónicas de jornais. Em 2019 a simples ideia de viajar até uma das mais afetadas cidades pelo sobreturismo de massas, bloqueada por gigantescos cruzeiros, era coisa que não me entusiasmava. E fui vendo os malinhas de rodas a saltitar na calçada a regressar a Lisboa na segunda quinzena de Agosto que misturados pelos putos locais, à noite, vaguearam bêbados e sujaram, grafitaram, encheram de lixo todo o centro. Hoje, o instagramer de viagens é como o canário na mina. Bom, neste caso há sempre canários na mina (mesmo que uma guerra ou catástrofe tenha acabado de acontecer). Mas quando há centenas de canárias a posar para o like então está bom para avançar. Junto à minha casa voltaram a megaproduções de pitas com milhões de seguidores que trazem diferentes vestidos para se fotografarem frente a uma parede de azulejos. Isto era Lisboa. Em Veneza a sucessão de fotos em pose profissional de chavalitas delicodoces com 300 mil likes no mesmo spot na ponte de Rialto garantia-me que a cidade estava aberta. Há que ter olho.

Esta era a oportunidade antes de voltarem os “outros”. Os mesmo maus da fita. Não nós, os europeus pobres em low cost. A verdade é que a Veneza é das cidades do mundo mais especializadas em superar pestes. E depois fazem uma basílica. Há até um percurso turístico “Venice Plague Tour” que visa demonstrar como a cidade foi moldada em função das pragas. Ou dos finais destas. Nestes últimos meses ficámos a saber que Quarentena foi um termo inventado em Veneza ou que aquelas máscaras de bico eram dos médicos venezianos que colocavam flores nessa ponta oca para dissimilar o cheiro pestilento e quiçá impedir a morte de entrar. Isto foi o bê-á-bá das leituras covídicas. Não precisava de ter ido a Veneza. Também foi agora passadas algumas décadas que tive pachorra para rever a Morte em Veneza do Visconti. Quando tinha 14 anos e via nos anos 80 ciclos de cinema da RTP2 aquela situação narrativa do velho fascinado platonicamente pelo efebo polaco em iminente peste de cólera veneziana era, digamos de muito pouca utilidade para conversas de esplanada em Beja. Divago. Veneza e peste tratam-se por tu. Foi um ponto de partida e chegada da Rota da Seda. E dos muitos bens que se transacionaram na viagem de milhares de quilómetros – de ciência à matemática, de riquezas materiais a religiões, línguas ou descobertas revolucionárias – os vírus e doenças variadas foram das que mais impacto tiveram no pessoal. Sim, entre a seda e a peste posso garantir que a peste teve mais sucesso entre todas as camadas da sociedade. E Veneza, mesmo com a ilha das quarentenas, mesmo com receios legítimos, por esses séculos lá foi levando com outra pestilência em cima que afugentava os turistas, punha os ricos em debandada e controlava a população. O que se viu agora.

A Covid 19 foi apenas mais outra. A cidade está imaculada. Não há um papel no chão. Um grafiti. Os cartazes exigem que os turistas se comportem com civilidade e usem t-shirt pelo menos. Há turistas? Alguns. Mas não há americanos. Não há circuito asiático. Os cruzeiros foram expulsos da lagoa. Não há negacionistas: quem não tiver certificado de vacinação não pode fazer nada naquela cidade. Nem entrar num hotel ou numa igreja em penitência. O que resta? Europeus com malas de rodinhas (como eu) a passar dois /três dias. Que se juntam todos nos mesmo dois, três quilómetros e se recusam a comer a tarte de frutas no Café Florian na Praça de São Marcos sem imaginar a extraordinária viagem que os produtos fazem para chegar a um local de Veneza onde se fazem as tartes em si e depois viajam de novo pelos canais até chegar a um ponto perto do café e então são levadas tabuleiro a tabuleiro para Café. E são ótimas. 16 euros um bolito. Sábado já há gente, sim olha lá está uma instagramer a posar e outra e outra a mudar de outfit para nova foto. Uma beleza. Não frequentam museus porque não podem fotografar lá dentro. Entrada no Palazzo Ducale? Dois minutos. Vazio. Uma experiência que começa por ser confrangedora e depois vai crescendo para euforia: Que diacho! Isto está por nossa conta. Andar sem destino ah, e já agora vamos entrar aqui – não há fila, não deve ser importante – e de repente é a Scuola Grande de di San Rocco, um prédio com todas as salas e tetos decoradas por Tintoretto. Lá dentro meia dúzia de pessoas. E pensei que numa qualquer subtileza do Destino: Veneza, Tintoretto, Ticiano, só para mim, um concerto de Vivaldi com bilhetes na primeira fila, tudo isto sido guardado para quando tivesse atingido o meu estado de Aschenbach, o homem de meia-idade de Thomas Mann retratado por Visconti. E o meu Tadzio não era um rapazito adolescente – nem os tempos nem a minha namorada gostariam da analogia – mas sim Veneza, que nunca teria tido hipótese de contemplar na sua beleza total há 20 ou 30 anos, com o espírito meu espírito de tipo-instragramer da altura (fosse lá o que isso fosse nos anos 90). Longe de mim agradecer à peste. Mas há que reconhecer e tirar o chapéu de palha ao Destino quando numa daquelas suas manobras retorcidas nos dá um presente e temos de ter a humildade para aceitar essa grandeza mesmo que tudo não passe de uma mera causalidade e estejamos a fingir que fomos escolhidos por algum motivo. Obrigado.

Luis Pedro Nunes