‘Homem que cora: a última discriminação’ por Luis Pedro Nunes

Ed Sheeran blushes

Homem que cora: a última discriminação

“Isso de acabar com os duplos critérios é tudo muito bonito” – dizia-me um amigo de acabar com estereótipos de género – “mas uma coisa te garanto: se uma miúda fica corada é uma queridinha inocente, agora se eu coro sou um fraquinho cobardolas. Achas que tenho algum controle sobre se a minha cara fica vermelha?” Pelo santo protetor das intolerâncias mais olvidadas! É este alerta para o corar, o fluxo repentino, inesperado e indesejado de sangue nas bochechas devido a algo que está a acontecer (ou se pensa que pode vir a acontecer) enquanto descriminação de género e não só. Não o posso deixar passar enquanto drama pessoal para muitos. Coraria de vergonha. Má piada. Porque, depois de pensar, ouvir e ler, ensimesmei com este mistério que Darwin chamava “a mais peculiar das emoções humanas”.

Para já, é de facto uma injustiça que não temos em conta. Numa realidade em que todos tendem a esconder as suas emoções e se possível a manipular os sinais que transmitem aos outros (ah, a glorificação da “cara de poker”), corar é aparentemente dar um sinal para o mundo, revelar o que se está a pensar: embaraço, culpa, pudor, flirt, ingenuidade, vergonha, segredos por revelar ou “ter sido apanhado a pensar cometer um pecado”. Esta é a versão do século XIX. O que é corar evoluiu no tempo. E a Literatura sempre teve um gostinho por donzelas que coravam. Não tenho presente, assim de repente, efebos coradiços. Mas, lá está, seria uma sinal de uma total fraqueza ou doença moral.

O que é que a Ciência nos diz? O interesse terá sido tão pouco que não chega a grandes conclusões. Há uma descarga de adrenalina, provocada por uma resposta emocional, que leva a um fluxo de sangue à área do rosto e a uma dilatação dos vasos sanguíneos. Bah! Mas qual a função do corar do ponto de vista evolucionário, tendo em conta que é incontrolável e involuntário? Terá servido algum propósito. A “vergonha”, sabe-se hoje, terá sido útil para evitar excessos de egoísmo dentro do grupo. A moral, a autorrepressão, os “problemas de consciência” (como lhes chamamos hoje) movidos pela “vergonha” tiveram assim um propósito evolucionário. E corar?

Para quem cora as coisas não são tão binárias. Há quem core sem motivo aparente a meio de uma conversa banal, onde nada foi “descoberto”, com pessoas com quem nem está falar. Mas assim que sente que está a ficar vermelha dá-se o espoletar de uma reação em cadeia incontrolável. Está a dar um “sinal ao mundo”, que neste caso nem tem nada a ver com nada, e cora ainda mais, agora de vergonha por estar a corar por coisa nenhuma e do que os outros estarão a pensar. Cora-se por um faux pas, mas também por um elogio. Cora-se por antecipação de qualquer coisa que possa acontecer e denunciar – denunciando. É foco de ansiedade.

É sofrimento para muita gente: eritrofobia, o medo de corar. Conseguimos fazer brincadeiras parvas quando sabemos que alguém cora e dizemos “vou-te fazer corar “ e essa pessoa cora de facto. E desconhecemos que isso esconde essa angústia/stress de não querer corar, porque há um processo de autorrevelação (falsa?) que se desencadeia. É território desconhecido para os não corantes.

É interessante perceber a quantidade de gente que diz que cora, mas que tal não é perceptível para os demais. É puxar o tema e alguém diz logo “eu coro imenso, aliás, já estou a corar”, o que demostra que, para algumas pessoas, será algo que elas sentem, mas os outros nem percepcionam. E contudo será algo que as incapacita (as pessoas morenas e negras também coram, obviamente).

Um ator pode fingir todo o leque de emoções humanas, como chorar, mas corar é que não. Há um momento súbito de espanto/descoberta que provoca aquele fluxo sanguíneo que chega a refletir-se no brilho dos olhos e que não é replicável. Os escritores do passado sempre acharam algo de tipicamente feminino, uma tela branca em que podiam colocar todas as emoções que lhes dava jeito no momento, “de pudor a maldade”. O mistério da psique feminina era resolvida pelo súbito ruborizar das faces. Era assim que a mente feminina se expunha de forma tão evidente ao mundo. E essa ideia ainda persiste, porque associamos uma correlação causal entre o corar e algo efetivo. Ora, pode não haver, como se viu. Nos homens a discriminação é maior.

 

Basta ler um textos sobre eritrofobia para ver ao que se submetem as pessoas que sofrem desta condição. Grupos de autoajuda e hipnoterapia, dado as queixas que faziam de descriminação na progressão do trabalho e nas relações sentimentais. Alegam que torna-se difícil conhecer alguém, pois cria-se logo um impeditivo antes mesmo da interação. Há casos de pessoas que se submetem a terríveis procedimentos cirúrgicos para cortar os nervos que causam a dilatação dos vasos sanguíneos faciais. “As pessoas pensam que isto é muito bonitinho numa mulher. Eu se não corasse estaria noutra posição na minha carreira profissional, dado que só de pensar que vou entrar numa reunião coro logo.” Ah pois. Disto ninguém fala.

 

*texto originalmente publicado no Expresso

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