Vão ao Youtube, ao Spotify ou à vossa colecção de discos se tiverem essa sorte. Encontrem o “Lucky Man” dos Emerson, Lake & Palmer, ponham a tocar.
O banco de trás do carro do meu pai. O lugar, e não me provem o contrário, mais seguro na face da Terra. Como esperava que a viagem fosse longa, tão longa quanto o olhar entrecortado que me olhava de quando em vez pelo espelho retrovisor. Um olhar que me dizia: que podia ficar descansado, deixar que as minhas aventuras se cavalgassem pela janela fora, porque ele estaria sempre ali, assegurando a viagem.
Foi neste lugar que aprendi quase tudo. Imaginei quase tudo. Vivi quase tudo. Era tão fácil. Um convite tão fácil de aceitar. Afinal de contas o mais forte dos homens assegurava que ali era intocável. Que o mundo se mostrava tal qual um caminho cénico de banda sonora de luxo.
Um parque de diversões em que os outros estavam aos meus comandos.
Batalhas infindáveis perante o meu olhar, paisagens agrestes que davam lugar a momentos de magia quando uns raios de sol quebravam as barragens de nuvens para deixar os mais heróicos dos protões proclamar pedaços de terra lavrada como suas.
Encontrem agora o “In Every Dream Home a Heartache” dos Roxy Music.
Como odiava partilhar o privilégio. Como me sentia incomodado quando eramos três naquele lugar. Como ficava longe de tudo quando a janela não era apenas minha. Quando o frio glaciar do vidro, não me transmitia ainda mais o calor que sentia na face. Com que direito me tiravam as gotas de chuva que transformavam a paisagem? Como saberia eu agora das aventuras que se passavam para lá da janela?
O meu pai bem via, e distribuía o privilégio como um bom líder: “Agora é a vez de o Quico ir à janela.”
O dia em que guiei o carro do meu pai pela primeira vez, foi também a primeira vez que senti o privilégio e obrigação de passar essa mesma segurança. Em que senti que o olhar do retrovisor não é um dado adquirido, mas um inequívoco talento que só manifestamos quando o corpo lhe aprende os truques e as manhas.
Nesse dia o meu pai sentou-se ao meu lado. Ralhou, reprovou e finalmente aprovou que ali havia potencial. Que poderia um dia almejar ao sonho de assegurar no volante o mundo de quem atrás o viveria. Mas isso ia tomar seu tempo. Era outra viagem que me aguardava até lá.
…
Saltamos 15 anos. Mais que tempo para que encontrem a “This Must Be The Place” dos Talking Heads, para que deixem entrar os instrumental, para que o David Byrne diga em tom de sussurro com sorriso na voz: “home is where I want to be”
É o fim de uma longa viagem. Eu guiei todo o caminho. O meu pai sentou-se atrás para descansar. Olhei pelo retrovisor, ele olhava pela janela. Parece que estamos a chegar a casa.
Francisco Morgado Véstia