ALBA: a história do primeiro carro de competição 100% português

carro de competição português

O traço quase sempre contínuo. Primeiro, a curva. Depois, a contracurva. A sequência repete-se dezenas de vezes até que, à direita, surge o esconderijo perfeito. Estacionamos na sombra das mil árvores de tronco alto, não muito longe dos mil metros de altitude. Nós, o granito, o xisto, as urzes, o ar puro e o barulho do silêncio. É aqui que mora o primeiro e único automóvel genuinamente português, construído em 1952. Em plena Serra do Caramulo, foi o Alba que nos matou a sede.

 

O Império

1921, Albergaria-a-Velha. Faltam cerca de 31 anos para chegarmos ao pináculo da tecnologia automóvel do país. Por enquanto, a recém-nascida Fundição Albergariense não passa de uma fábrica metalúrgica. Mas isso está prestes a mudar, graças à força de um homem, que para muitos é uma incógnita: Comendador Martins Pereira. Proactivo. Determinado. Visionário. Muitos outros elogios poderiam ser-lhe dirigidos. Os ares de Boston, EUA, fizeram-lhe bem. Foi de lá que trouxe, já aperfeiçoadas, as técnicas de fundição e metalurgia. Não há dúvidas de que deram bastante jeito. Afinal de contas, é nestes 41.000 m2 de fábrica que se começa a escrever uma boa parte da história industrial portuguesa: postes de iluminação em ferro fundido, ferros de engomar a carvão, fogões a lenha, caixas de correio, bocas-de-incêndio, louças de alumínio, contadores de água… Ainda hoje (2018), de norte a sul, Portugal continua a repousar nos bancos de jardim lá construídos. O espírito inovador de Martins Pereira transpôs fronteiras e alcançou território colonial, Estados Unidos, Espanha França e Itália. Aliás, alcançou até a admiração de Salazar, que não teve problemas em abrir os cordões à bolsa para patrocinar o progresso da fábrica. Mas o coração de Martins Pereira está em Albergaria. Não é por acaso que a Fundição se passa a chamar Alba – uma espécie de diminutivo carinhoso. Por iniciativa do Comendador, nascem o Cine-Teatro Alba, o Parque de Recreio e Desporto Alba, o Sport Clube Alba, hospitais, refeitórios e bairros sociais. Só falta mesmo uma coisa para que o Império Alba fique completo. Mas essa já não será da responsabilidade de Martins Pereira. Bom, pelo menos, não deste Martins Pereira que acabámos de conhecer.

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A jóia da coroa

1952, Albergaria-a-Velha. Após quatro meses de gestação, vem ao mundo o OT-10-54. O primeiro dos quatro manos Alba. Pesa 500 kg. É baixinho. Muito mesmo. Tem um tom amarelado, assim para o pálido, e uma risca longitudinal, azul e amarela, no capot. É a cara chapada do pai: António Augusto Martins Pereira, o neto. É ele o verdadeiro Duque de Alba. António tinha uma cegueira pelo desporto automóvel. Queria sentir a adrenalina de cortar uma meta. E, de facto, cortou algumas. Ele e o seu amigo Francisco Corte Real Pereira, com quem partilhou a fantástica aventura de construir um carro de raiz. O Alba, esse, começou por ser uma brincadeira, mas tornou-se num caso sério. O motor Fiat ou Simca de 1089cc. é, por esta altura, do mais trendy que há. É com ele que os quatro manos Alba são inicialmente apetrechados. E serve perfeitamente. É que, na categoria sport, o limite estabelecido pelo Automóvel Clube de Portugal (ACP) é de 1100cc. Mas não é segredo para ninguém que o filho mais velho é sempre o preferido. António tem outros planos para o seu OT-10-54. Quer bater-se de igual para igual com os Porsche 550 Spyder e os Denzel. E, para isso, um 1100cc não tem estaleca. O melhor que me podia acontecer agora era o ACP alterar o regulamento, pensa António com os seus botões. Não há dúvidas de que os deuses do desporto automóvel ouviram as suas preces. A fasquia sobe para os 1500cc. Agora, o melhor é fazer um telefonema para os tipos da Maserati a perguntar quanto me fazem por um motor, pensa novamente com os seus botões. Mas pensou mal. Oitenta e nove mil escudos foi o que lhe pediram. Com o salário que recebe, António precisa de trabalhar quase dois anos para suportar tal despesa. Sonhador inconformado, decide arregaçar as mangas e construí-lo por sua conta. Nunca teve qualquer curso técnico ou superior. Toda a mecânica que tem dentro de si chegou-lhe por via do avô. Mas tem a sorte de poder contar com as mãozinhas de ouro do piloto Francisco Corte Real Pereira, do mecânico Ângelo de Oliveira Costa e, claro, de uma dreamteam da fábrica Alba, com carpinteiros, fundidores, desenhadores, engenheiros, técnicos. Primeira tentativa: pegamos no motor FIAT, mantemos a mesma base, e aumentamos-lhe o diâmetro. Resultado: 1325cc. É bom, mas não chega. Segunda tentativa: fazemos a mesma coisa, mas a partir de um bloco da Peugeot. Resultado: 1360cc. É muito bom, mas não chega. Terceira tentativa: vamos experimentar diminuir o diâmetro de um Alfa Romeo 6C 1750. Resultado: 1500cc. É óptimo, mas continua aquém do calibre dos Porsche. À quarta é de vez. Chega de trabalhar por cima de motores alheios. Senhoras e senhores, é com grande honra que vos apresentamos o primeiro motor totalmente desenhado e construído em Portugal, todo em alumínio, com duas árvores de cames à cabeça, duas velas por cada um dos quatro cilindros e 1500cc. É hora de dar à chave pela primeira vez. Um som estrondoso, bonito e inconfundível, que António Augusto descreve assim: “Nem parecia um motor de explosão. Soava mais a um dínamo!”. O que é nacional é bomba.

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O corta-metas

31 De agosto de 1952, Vila do Conde. É a terceira edição do Circuito vila-condense. O Alba faz a sua estreia oficial em pista. Uma entrada com o pé esquerdo. Ao volante, Corte Real Pereira abandona a prova por problemas na viatura. As histórias mais bonitas também são feitas de capítulos menos felizes. E o Alba é dos rijos, daqueles que se levantam logo a seguir à queda, que não aceitam um não como resposta. É de outra casta. Um mês depois, também em Vila do Conde, o mesmo Corte Real Pereira consegue o primeiro pódio, com um segundo lugar na geral. Entretanto, é na oficina que António Augusto se refugia em busca da fórmula infalível. Motor a motor, enche o Alba o palmarés. Em 1953, no Circuito da Boavista, Taça Cidade do Porto, o OT-10-54 deixa para trás 30 carros, 20 dos quais também de origem nacional. O FAP de Abílio Barros foi o único capaz de fazer peito a Corte Real Pereira. Mas a equipa Alba consegue mesmo o primeiro troféu. António Augusto não se metia em provas de velocidade. Foi uma promessa que fez ao avô. Nos troços de regularidade, venceu o Rally da Montanha, em 1954, o Rally de Guimarães e o Rally do Vinho do Porto à Régua, ambos em 1955. Em poucos anos, os números dos Alba são verdadeiramente impressionantes: 42 provas, 25 pódios e 10 vitórias, 5 delas absolutas. Em competição, o último alcatrão que teve o privilégio de ser pisado por um Alba foi o do Rally Nocturno de Salgueiros. Não foi um adeus. Foi um até já. Não gostamos de despedidas. Preferimos reencontros.

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16 De maio de 2016, Serra do Caramulo. Borboletas no estômago. Não sabemos como é suposto comportarmo-nos perante o carro mais português de sempre. Ele já está à nossa espera nas históricas prateleiras do Museu do Caramulo. É lá que tem estado nos últimos anos. E agora está prestes a sair, empurrado pelas nossas próprias mãos. Ponto morto. Não custa nada. Só custa a crer que pesa uns escassos 500kg. Ao pé da maioria dos carros do seu tempo, é como uma pena. Foi mais difícil fechar o portão do Museu do que empurrá-lo. Cá fora, o sol já bate na chapa e realça as curvas perigosas do Alba. É nele que saímos para enfrentar as curvas perigosas da famosa rampa do Caramulo. Mais parece um desfile. À volta, tudo pára para olhar. Mais novos e mais velhos. Devem estar a perguntar-se que marca é. No livrete, consta que é um Fiat Reconstruído. Na nossa memória, ficará para sempre registado como Alba. O único carro de competição cem por cento português só tinha sido conduzido por nove pilotos. Até hoje. Nós fomos o décimo e o décimo primeiro. Infelizmente, António Augusto Martins Pereira já não está cá para ver a nossa cara de satisfação. Deixou-nos em janeiro de 2013, com 86 anos. O artista é mortal, mas a sua obra é eterna.

Ficha Técnica

Matrícula | OT-10-54
Data | 1952
Design | António Augusto Martins Pereira
Construção | Fábricas Metalúrgicas Alba – Albergaria-A-Velha
Potência | 90 CV
Nº de Cilindros | 4, em alumínio
Cilindrada | 1.500cc
Caixa de Velocidades | 4
Limite de Velocidade | 200 Km/h
Peso | 500Kg
Nº de Motor | 108-C 231 944
Nº de Chassis | 508-C 229 808
Exemplares | 5

Fotografias: Pedro Ramos Santos

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