“És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.”
Miguel Torga
Estas palavras que encerram um dos mais belos poemas da língua portuguesa são marcantes na minha vida e partilho-as neste dia em que o mundo se curva a um ser humano, um homem, ímpar.
Na África do Sul, os elementos acinzentam-se e choram na partida de um homem bom.
Mas eu acredito que a vida está repleta de atos de heroísmo. Cada um à sua maneira. Desde que nos reconheçamos nessa loucura.
Quando nasci, Nelson Mandela estava preso há já quatro anos em Robben Island. A minha primeira grande reportagem aos 22 (?) anos foi na África do Sul. Inesquecível, por todas as razões. Foi de resto a primeira vez que viajei de avião – um Boeing 747 Jumbo, de dois andares. A companhia sul africana SAA estava proibida de sobrevoar todo o espaço aéreo africano por causa das leis raciais. Acompanhei durante as longas 14 horas de viagem o contorno de África, porque a rota do avião tinha de acompanhar, pela orla exterior, o espaço aéreo de cada pais africano, desenhando uma linha sobre o oceano, paralela ao continente, mas sobre a água. Só na Namíbia havia autorização para usar um corredor aéreo que dava acesso à África do Sul e a Joanesburgo.
Durante as duas semanas no país, choquei-me com as casas de banho públicas: para homens, mulheres e… “coloured”. Estávamos em 1989. O muro de Berlim estava prestes a cair. Todos os muros vacilavam. Respirava-se esperança, porque havia tudo por fazer. Choquei-me, domingo de manhã, numa família bôer, em que nos arredores de classe média de Joanesburgo, o pai preparava um barbecue, dando instruções ao filho, no jardim, que praticava tiro ao alvo com uma espingarda sobre um alvo… que era a silhueta de um negro. A criança tinha seis anos.
Arrepiei-me nas ruas do Soweto, impenetráveis para a polícia e para brancos, que só pude conhecer numa viagem de taxi conduzido por um madeirense – o único que aceitou a “loucura” de me mostrar o bairro. A esquadra da polícia tinha muros de 12 metros de altura, encimados por arame farpado e não havia carros patrulha: as operações policiais eram de helicóptero.
Cruzei-me com os táxis coletivos, destinados aos negros. E procurei registar os sinais de um país absurdo, que estava prestes a abraçar a mudança, com a eleição do último presidente branco, Friederick Willem DeKlerk. Seria ele o homem branco a decidir a libertação de Nelson Mandela, contrariando o sentimento de medo e ódio que dominavam nos seus eleitores e na maioria branca do país. Ele foi a mão que abriu a cela do herói. E também neste gesto há heroísmo.
A saída da prisão de Nelson Mandela foi um dos momentos mais arrepiantes da minha vida. A imagem sorridente de um prisioneiro político, guerreiro dos mais justos ideais, a dar os primeiros passos em liberdade em direção às câmaras de televisão, foi um dos momentos mágicos em que agradecemos a nossa própria humanidade.
Sentia-se, naquelas imagens, uma aura de esperança e de justiça; um frémito de liberdade e de fé, seja qual for a ideia que fazemos de Deus.
De alguma forma, o rosto e os gestos de Mandela nesses primeiros minutos de liberdade, e nos meses seguintes, foram os percursores de uma ideia política em que poucos – ou ninguém! – acreditava. Só Mandela: a convicção de que violência gera violência; a noção de que quando o homem é despojado da sua terra e dos seus ideais, se transforma numa besta; a convicção de que a vingança é sempre o caminho errado. Ele é o maior ator dos nossos tempos da compaixão e da reconciliação. E, por estranho que seja, essa atitude é, ela própria, uma loucura, em que ele, lucidamente, se reconhecia.
A ousadia é loucura; o talento é loucura; a determinação e a vontade são loucuras.
Resistir é loucura; fazer é loucura; a verdade é uma loucura.
Os homens que têm razão, passam, muitas vezes, uma longa parte da vida a resistir aos que lhes dizem que não têm razão.
No dia em que o Pedro inaugura este espaço dedicado ao” homem” e me convida para deixar um testemunho eletrónico, considerei que o mais relevante é recordar e voltar à essência do Homem.
A vontade; a convicção; o desejo – mesmo o desejo do pecado! – mesmo o desejo ao direito de ser infeliz. Porque quem o procura, descobre a sua própria felicidade.
E nessa viagem, ajuda a revelar a de outros.
“Sou o dono do meu destino,
Eu sou o comandante da minha alma.”
William Henley
José Alberto Carvalho