Por Salvador Patrício Gouveia
Museu do Caramulo
Corria o ano de 1900 quando vários fabricantes e proprietários decidiram levar a cabo uma volta à Grã-Bretanha com o objectivo de apresentar o automóvel às pessoas e cidades, que pouco ainda o conheciam. Nascia assim o 1000 Mile Trial, que fazia Londres – Edimburgo – Londres, um feito impressionante nos dias de hoje, quanto mais há 114 anos, onde a qualidade das estradas e a tecnologia automóvel estavam ainda numa fase embrionária. Mesmo assim, alinharam 84 automóveis, com 47 deles a chegar ao fim, e com Charles Stuart Rolls a levantar a taça no final.
Apesar do impacto da prova, a mesma nunca mais se realizou até 2014, quando a HERO (Historic Endurance Rallying Organisation), em associação com o RAC (Royal Automotive Club), decidiu reactivar a prova, mantendo o espírito fundador da mesma, ou seja, aventura, endurance e muitas milhas percorridas por estradas secundárias e interiores.
Assim, em Julho deste ano, 42 equipas com automóveis fabricados até à Segunda Guerra Mundial, incluindo seis equipas portugueses, fazendo de Portugal a segunda nacionalidade mais representada na prova, alinharam para percorrer as mais de 1000 milhas por terras de Sua Majestade. Entre as equipas lusitanas estava o Museu do Caramulo, ao volante de um Rolls-Royce Phantom II Sports Coupé de 1930, um seis cilindros com 7.668 c.c., o motor alguma vez feito pela marca inglesa, e que debitava 140 CV. Trata-se de um automóvel potente, mas também grande e pesado (cerca de duas toneladas e meia).
A aventura para a equipa do Museu do Caramulo começou ainda em Portugal, quando, na sexta-feira, o automóvel fazia a parte final da sua preparação, que incluía ir a rodar até ao Porto para ser carregado no transporte para Inglaterra, e avariou, à chegada àquela cidade, quando o seu dínamo deixou de funcionar. Assim, tivemos que carregar um automóvel avariado para um rali, sem saber se teríamos capacidade de o arranjar em tão curto espaço de tempo e sem conhecer a razão da avaria a 100%. No entanto, acreditando na nossa capacidade de adaptação e resolução de problemas, arriscámos.
A equipa, formada por mim, pelo meu irmão Tiago Patricio Gouveia e pelo meu primo João Lacerda, chegou a Londres ao fim do dia de Sábado, para o jantar inaugural da prova na extraordinária sede do RAC em Woodcote Park, com o dínamo na mala, algumas ferramentas e muita esperança.
A prova arrancou no Domingo de manhã, altura em que ficámos os três num armazém nos subúrbios de Londres a fazer macumba mecânica para tentar trazer o Rolls-Royce de volta à vida. Foram cinco horas a ler o manual da época, a montar o dínamo e a voltar a comandar a distribuição do motor (dito assim parece fácil, mas feito com recursos limitados é uma roleta russa), sem saber se iríamos participar nesta prova ou fazer as malas e voltar para Portugal. A verdade é que cinco horas depois, o Rolls-Royce acordou, e ainda que não a 100%, pois estava a trabalhar apenas com o magneto, o “monstro” arrancou com muita força, para apanhar as restantes equipas, com quem nos encontrámos já no final do primeiro dia do 1000 Mile Trial.
No segundo dia, arrancámos de manhã para começar a pôr kms no conta-quilómetros. Estradas estreitas, timings apertados, e um Rolls-Royce que faz birra sem avisar. Independentemente disto, ficámos desde logo abismados com as paisagens que nos rodeavam, absolutamente fantásticas. Neste mesmo dia, soubemos do primeiro acidente em prova. Um lendário Bentley 3 Litros de 1925, Le Mans winner, bastante original e sem preço, que rodava a grande velocidade (como foi feito para ser), ficou bastante danificado quando embateu num camião numa estrada estreita. Muitos danos e um piloto ensanguentado não contiveram o mesmo de aparecer de volante ao pescoço no bar do hotel ao fim da tarde, em tom de brincadeira. Nada abate o humor britânico.
No terceiro dia íamos sentindo falhas no Phantom II, e sabíamos que podíamos estar sempre a um minuto da prova terminar. Neste dia voltámos a sentir que tudo poderia ter terminado, quando tivemos uma avaria de motor em simultâneo com um furo de pneu, o que nos fez parar no meio da subida de uma montanha. Mais uma vez, tudo se resolveu, e entrámos finalmente em território escocês, rumo a Edimburgo, com uma paragem clandestina no Castelo de Hermitage. À chegada ainda tivemos tempo de estar com David Richards, antigo team manager da Fórmula 1, antes do jantar no Royal Yacht Britannia, o antigo yacht da família real. Um dia em grande!
O quarto dia começava a mostrar que este Rolls-Royce poderia mesmo conseguir chegar ao fim da prova. Com uma passagem relâmpago no museu Jim Clark e uma visita ao castelo de Alnwick, extraordinário pela sua dimensão e arquitectura, e famoso por ter sido usado nos filmes de Harry Potter, tivemos duas paragens inesperadas neste dia. A primeira quando ficámos atrás de um Lea Francis que chocou de frente contra um tractor gigante, e tendo a estrada apenas uma faixa, ficámos bloqueados até a equipa vitimada ser socorrida. A segunda paragem deu-se quando nós próprios tivemos o nosso choque frontal com um Mercedes que circulava em sentido contrário. Não deixou marcas, apenas um grande susto. O condutor do Mercedes quis, claro, fotografar o nosso Rolls-Royce com o qual ficou encantado, colmatando, antes de seguir caminho, que “tinha sido um prazer bater em nós”.
Ao quinto dia, a nossa confiança estava em crescendo, acreditando cada vez mais na invencibilidade mecânica do nosso Rolls-Royce. Ainda assim, registámos neste dia dois furos, o que fez com que tivéssemos esgotado rodas e câmaras suplentes, significando por isso mais um atraso à espera da assistência. Neste dia também, por entre uma estrada deslumbrante nas montanhas inglesas, matámos um faisão, que foi apanhado por um dos faróis do Phantom II, algo aparentemente comum nesta estrada, segundo o que nos contaram. No final do dia tivemos uma surpresa no parque do hotel, quando para nosso espanto encontrámos o acidentado Bentley de Le Mans, totalmente reconstruído 48 horas apenas sobre o seu acidente. Aparentemente, a organização fez questão que este automóvel histórico terminasse a prova. Assim, o seu proprietário contratou uma equipa de 20 pessoas que trabalharam 24h sobre 24h, sem limite de orçamento, para o devolver ao seu estado original em apenas dois dias, em que ainda tiverem tempo de incluir um autocolante de um camião na porta com uma cruz por cima. Mais uma vez, o humor inglês sempre presente…
Já com a meta nas nossas mentes, toda a esperança caiu por terra quando, no sexto dia, o Rolls-Royce, que corajosamente tinha percorrido já mais de 1.500 km em cima de um dínamo antigo, e a trabalhar em cima do magneto, decidiu dizer basta. Estávamos perto de mais para parar agora. Em conversa com Alastair Caldwell, ex-Team Manager da McLaren na Fórmula 1 durante anos, e também a participar no 1000 Mile Trial, o mesmo sugeriu usarmos uma bobine de um automóvel “normal”, e disponibilizou-se para emprestar uma que tinha no seu Alfa Romeo e que não estava em uso. Foi esta solução MacGyver que prolongou a nossa participação na prova o suficiente para que, ao sétimo dia, tenhamos conseguido cruzar a meta em Woodcote Park, num dia cheio de sol.
2.200 km, 850 litros de gasolina, muitas provas de regularidade, várias especiais, e inúmeras paisagens inesquecíveis depois, a “Phantom Team”, como já era conhecida a equipa do Museu do Caramulo, terminava a prova. Como seria de esperar, a dureza da prova, a idade dos automóveis e o entusiasmo dos pilotos fez com que das 47 equipas iniciais, apenas 34 terminassem o 1000 Mile Trial.
No balanço, fica uma aventura marcada por uma grande camaradagem, não só entre os membros da equipa, mas entre todas as equipas e organizadores, que jamais se apagará das nossas memórias. E fica também um enorme respeito pelas equipas que há 114 anos realizaram esta prova em condições ainda mais difíceis. A reedição do 1000 Mile Trial foi também uma homenagem a esta geração de pioneiros.
O Museu do Caramulo agradece o apoio da Câmara Municipal de Tondela, do Banco BPI, da Evans, da Milers e da Tudor Exide, sem os quais não teria sido possível realizar esta prova.
Salvador Patrício Gouveia
Museu do Caramulo