Bons Rapazes no Bons Sons | O maior da minha aldeia

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Aviso ao leitor: o texto que se segue pode conter vestígios de emoções fortes. Em caso de contacto com os olhos, consulte o seu amigo mais próximo.

Há quem defina o Bons Sons como sendo um festival dentro de uma aldeia (Cem Soldos). Os 4 dias que lá estivemos levaram-nos a uma conclusão (ligeiramente) diferente: o festival é a própria aldeia – e vice-versa. O que queremos dizer é: se pegassem em todos os artistas e bandas que por lá passaram, e os levassem para outro sítio qualquer, ainda que os concertos fossem rigorosamente iguais, já não teríamos um Bons Sons, mas sim um Sons Bons. É como fazer-se a distinção entre um homem grande e um Grande Homem. O Bons Sons pertence a essa categoria de festivais com F grande, apesar de ser dos mais pequenos, em termos de dimensão espacial.

Chegar, ver… e viver! Essa coisa de montar tudo para o espectáculo não existe em Cem Soldos. Cem Soldos está montado o ano inteiro. Basta chegar. Nada de diferente acontece quando há Bons Sons. A aldeia continua a ser ela própria. São os que chegam que se acomodam aos que já lá estão, e não o contrário. A palavra “recinto” nunca veio à baila. Muito menos sucedeu alguém dizer “eu ressinto-me” em relação aos estranhos que estavam a ocupar um espaço que lhe pertencia. Cem Soldos pertenceu a todos. Porque as casas dos habitantes viraram pontos de encontro, postos de abastecimento de energia, portos de abrigo, portas de passagem secreta, provas de repastos e brindes discursados, poslúdios das tantas da madrugada e prelúdios das tardes ensolaradas, postais de memórias #semfiltro, e até palcos improvisados para concertos coração-de-cartaz.

Nesta celebração da aldeia, os concertos são a banda-sonora arrebatadora do filme que já era digno de Óscar, mesmo sendo cinema-mudo. Mas não falemos de estátuas ou bustos erigidos no meio da praça. Ninguém quis ser mais que ninguém. Afinal, de que nos serve ser vocalistas, quando podemos ser elementos do coro, e actuar, em pleno coreto, se for preciso, inventando uma corneta, com o papel que sobrou de um cornetto, depois de uns banhos de cloreto (de cálcio)? Primeiro, ninguém sabe jogar ao quem é quem. Depois, a pergunta passa a ser: este tipo é-te desconhecido, não era? Nunca se sabe. A multidão pode até esconder um primo que, mesmo afastado, de (terceiro) grau em (terceiro) grau, enche a amizade o papo. Como sempre, há a família nuclear e a outra que se convida para os “casamentos” (concertos), mesmo que não dê notícias há muito tempo. A música decorre enquanto os reformados tratam de outro tipo de acordes – os Dó Mi Nós -, enquanto o pai segura a criança ao colo, enquanto os catraios furam as rodas de pessoas a jogar às apanhadas, e enquanto a velhota sorri da janela da sala, que tem vista para o palco. Todos eles são macacos de imitação no que diz respeito ao civismo e ao respeito pelo próximo. Os concertos não se atropelam uns aos outros, e as pessoas seguem-lhes as pisadas.

Em Cem Soldos, ser festivaleiro é ser artista e banda, vagueando pelas ruelas com desgarradas amistosas, refrães acabados de inventar, e coreografias divertidamente mal ensaiadas. O público reage sempre, seja com palmas ruidosas, com sorrisos a 20 metros de distância, ou com uma simples e indolor pancada nas costas, seguida de um “fixe” com o polegar. Enfim, assentimentos vários que, na pior das hipóteses, dão início a uma conversa deveras interessante (caso não desaguem numa irmandade). Uma essência que todos (pelo menos, a olho nu) parecem ter discernido com grande rapidez. Talvez por não ter havido grande espaço para as acessórias distracções tomarem conta de tudo. A selfie, o outfit, o penteado, o galanteio, o estar colado às grades para apanhar a baqueta ou a palheta, nada disso importou. Assim como não importou o dizer que lá se esteve, mas sim o ter estado lá, de facto. Foi bonita de se ver. E viver. A aldeia.