O Rali Dakar de João Conde contado pelo próprio – Parte I

«Era este o poster que tínhamos atrás da porta do quarto. No início da década de 90, as revistas traziam posteres no interior; hoje, acho que só a literatura para adultos mantém a tradição. Por esta altura, a decoração das paredes era da responsabilidade do meu irmão, era ele que vibrava com ralis, enquanto eu, com menos 6 anos, deixava-me influenciar pelas histórias com turbos e aventuras no deserto. Descobri, durante esta viagem, que o piloto do poster chama-se Franco Picco. Não era dos mais rápidos nem tinha a mota mais bonita, mas participava no rali mais louco do mundo e só isso já era inspirador. Esta é a minha homenagem, não foi por causa do Franco Picco, foi por causa do meu irmão!!

Dia 1

Antes de me juntar ao grupo, em Coruche, fiz questão de ir até ao Mosteiro dos Jerónimos. Este seria o meu ponto de partida secreto, afinal foi daqui que alguns saíram rumo a Dakar.

Dia 2

O dia de ligação Beja > Asilah foi de muito asfalto. Uma etapa cansativa, com a saída do hotel às 7h30 e chegada às 22h00. A travessia fez-se sem percalços, mas a demora na fronteira foi uma amostra do que nos esperava em todas as outras. Pelo caminho parámos em Jabugo para nos abastecermos de presunto, adivinhavam-se 15 dias sem comer porco, por isso nada melhor que guloseimas para matar saudades.

Dia 3

O primeiro de muitos problemas mecânicos. Este foi um dia difícil. A minha mota decidiu não pegar à saída do Hotel. A avaria era eléctrica, e depois de desmontar a mota toda não conseguimos identificar o problema. A caravana seguiu viagem e nós depositámos todas as esperanças num mecânico local. Não ia deixar a minha mota para trás facilmente.
Acreditei nas capacidades do mecânico marroquino, mas foi muito difícil manter o optimismo depois de 5 minutos na oficina. Só por milagre é que a mota voltaria a trabalhar. Acabou por queimar o CDI (centralina) da mota de forma espectacular, uma faísca gigante foi o último sinal de vida da KTM. Começaram os telefonemas para todos os concessionários KTM do sul de Espanha, telefonemas para Portugal, à procura de um CDI e de um estafeta rápido. Apesar de estar a poucas horas de casa, já estávamos em África, e em África as coisas são diferentes.
No meio de muitos telefonemas, a solução encontrada foi voltar para trás, levar a mota até um representante KTM em Ceuta e esperar pelo estafeta com o CDI vindo de Portugal. Carreguei a mota numa carrinha e segui viagem. Demorámos 3 horas para fazer 100 quilómetros. Tinha imposto o meio dia, do dia seguinte, como deadline para a tomada de decisão: se não tivesse mota não podia atrasar mais os meus companheiros de viagem. A caravana afastava-se para Sul e nós em sentido contrário… Fui escoltado até Ceuta pelo meu irmão, o Manuel, e mais dois amigos (num Land Cruiser, o melhor carro da caravana), a Rita e o Ricardo.
Nada me podia preparar para o que encontrei na fronteira de Ceuta. Clima de guerra entre refugiados, polícia e gente que anda por ali. O nível de agressividade é inacreditável. Despedi-me da Equipa à pressa e segui, com a mota à mão, para as filas intermináveis de revista e postos de controlo. Chegado ao outro lado, consegui um reboque que me levou à oficina KTM.
A oficina era moderna, igual a qualquer outra que conhecemos em Portugal. Isso deixou-me optimista, mas assim que entrei só vi scooters, muitas scooters. Perguntei a medo se já alguma vez tinha mexido numa KTM igual à minha. O Miguel respondeu-me que “há uma primeira vez para tudo”. Atirou-se a ela com vontade, depois de lhe contar a minha história. A Equipa estava à minha espera do outro lado da fronteira e tínhamos que seguir viagem.
Mesmo sem o CDI, o Miguel conseguiu perceber qual o problema original e as notícias não podiam ser piores. Era uma avaria complexa e a mota nunca estaria pronta a tempo. Assumir este divórcio foi difícil, mas a mota estava morta e eu tinha um voo para apanhar em Dakar daí a uns dias. Aqui, o apoio da Equipa foi vital. Juntei-me a eles e planeámos a nossa etapa de recuperação, tínhamos um longo dia pela frente.

Dia 4

Saímos do hotel às 5h00 com um objectivo ambicioso. 1200 quilómetros em asfalto com médias de 90kms/h. A sentir-me o responsável por todo aquele atraso, assumi a responsabilidade pela logística nas portagens. O Land Cruiser era o primeiro a chegar, eu saltava do carro e ficava a pagar a passagem das motas. Poupávamos tempo e eles mantinham a concentração.

Segui viagem com a convicção de que ia encontrar uma mota que me levasse até Dakar. Com a ajuda de amigos, um a viver em Marrocos e outro em Lisboa a fazer contactos, consegui esgotar todas as possibilidades nas cidades grandes por onde íamos passando. Há milhares de motas em Marrocos, principalmente em Casablanca e Marraquexe, mas eu só via scooters…

Falaram-me que numa cidade às portas do deserto ia encontrar a melhor de todas as garagens. Fiquei desconfiado, mas não tinha nada a perder. O Aziz não faz negócios pelo telefone, por isso tive que convencer a Equipa a fazer um pequeno desvio até Zagora para visitarmos a Garage Iriki. Chegámos tarde, já passavam das 22h00, mas o Aziz recebeu-nos como se fosse um amigo de longa data. É raro eu cumprimentar alguém com um abraço, muito menos no primeiro encontro, mas acho que foi assim que conheci o Aziz, com um abraço. Fez-me sentir em casa e era isso que eu precisava depois dos últimos dois dias.
A Equipa perdeu-se pela rua mal iluminada e as várias lojas forradas com fotografias. O Aziz tem fotos com todos os grandes pilotos do antigamente, todos já ali passaram. Dizem que foi mecânico do Marc Coma, eu acho que ele foi mecânico deles todos, mas sem sair da rua dele.
O Aziz fala muitas línguas sem falar nenhuma. A primeira coisa que me disse, em português, foi: “A pressa mata”. Depois de lhe contar a minha história, ele riu-se e desdramatizou. Interpretei aquilo como: tens um problema, eu tenho a solução! Fiquei estupidamente confiante e tranquilo, apeteceu-me dormir ali e resolver as coisas com calma.
Ele estava a tentar falar com alguém que tinha a mota ideal para mim. Isto demorou demasiado tempo e a Equipa estava impaciente, ainda tínhamos mais 200 quilómetros até ao bivaque. Sem querer ser indelicado e perturbar o ritmo natural e sereno das coisas por ali, lá consegui meter-me no carro com ele e encontrar uma Suzuki DR 350 hibernada numa garagem sinistra. A mota não pegava e estava sem suspensões, mas tinha um depósito grande da Acerbis (que não era de origem) e um motor conhecido por ser ultra resistente. Negociei a mota em 10 minutos, como se faz nos bazares marroquinos. Fui rebocado na “minha nova mota” até à garagem.
A mota estava parada há muito tempo e o problema parecia ser do carburador. Eles iam trabalhar pela noite dentro para conseguirem recuperar a mota. Fui-me embora sem ouvir a mota a trabalhar, não podíamos perder mais tempo. Levei a mota do meu irmão até ao bivaque, imaginei-me a conduzir a Suzuki amarela por mais de 10 dias, ia ser difícil, mas estava entusiasmado com a ideia. A Suzuki DR BIG800 era uma mota com pedigree e das mais bonitas que já participaram no Rali Paris – Dakar. Convenci-me que chegar numa Suzuki DR 350 não seria assim tão bizarro (afinal partilhavam a mesma linhagem) e, para além disso, era a minha única opção. Chegámos a Mhamid, já passava das 02h00, e não éramos os últimos, faltavam duas motas e um carro.»