Bons Amigos | Filipe Vargas

Filipe

Terror Royal

O terror para mim é como o fermento. É preciso esperar umas 24 a 48 horas para sentir o efeito. Ou seja, não é propriamente durante o tempo em que estou a assistir a um filme de terror que sinto medo. É depois. Passados um ou dois dias quando, no conforto e segurança do lar, o inocente estalar de uma madeira ou o bater de uma janela, em vez de simples ocorrências domésticas, são imediatamente interpretados como fenómenos de origem paranormal. E pronto, depois lá vem o ritual de sempre: abrir todas as luzes, inspeccionar todas as divisões e, a certa altura, o erro crasso de perguntar: “está aí alguém?”. Ao verbalizar a possilidade de um espítrito malévolo poder estar no mesmo espaço que eu, essa possibilidade adquire laivos de realidade efectiva, e o resultado é uma fuga apressada do lar para a rua, onde, como toda a gente sabe, não há fantasmas.
Posto isto, parece completamente descabido que uma pessoa que não é espectador, não é grande fã nem apreciador do género fantástico, e que, sejamos claros, tem um medo do caraças de filmes de terror, mesmo assim aceite entrar num, não parece? Ainda por cima para fazer o papel de um pai coragem que tenta sobreviver a muito custo num mundo pós-apocalíptico dominado por zombies, com a sua pequena e adorável filha e que, no final (ATENÇÃO: SPOILER!), é também ele próprio transformado num zombie.
Pois. Mas o meu raciocínio foi o seguinte. “Isto até pode ser bom porque se eu dissecar e desmistificar a coisa, arrumo definitivamente os filmes de terror na categoria de fantasia pura (ao nível dos desenhos animados) e passarei a ser um espectador valente e destemido.” Oh santa ingenuidade…
Corta para… Porto. Ou melhor, arredores do Porto. Ou melhor, arredores da Maia (que fica nos arredores do Porto). Ou seja, arredores dos arredores. Numa qualquer montanha… ou serra… ou coiso (por motivos que a memória não me permite recordar, acho que faltei às aulas na Primária justamente na semana em que a Dona Pilar deu as Serras e as Montanhas de Portugal, e como tal, os meus conhecimentos geográficos referentes ao nosso País são, para usar uma expressão simpática, rudimentares). Adiante. Estávamos então numa qualquer formação rochosa – tinha árvores, tinha um rio, tinha montes, vales, e tinha aquele efeito especial que as serras sabem fazer, que se chama neblina. Assustador? Não. Mas dava um ar bucólico.
E começaram as filmagens. Confesso que, nesta curta-metragem, eu não tinha assim muita coisa para fazer a não ser: 1) estar vestido com uns trapos andrajosos, para ter o ar de quem já não tomava banho já há algumas semanas (ou meses, ou anos); 2) dar um curso intensivo de sobrevivência à minha filha; 3) comer comida de lata; 4) lutar contra uns zombies meio desarticulados e facilmente abatíveis, mas que, mesmo assim, não deixavam de ter uma aparência assustadora, com sangue a escorrer pela boca, olhos vazados e cabelos despenteados. Mas o factor medo, aquele arrepiar na espinha, aquela sensação de que nos estão a observar e que nos faz olhar por cima do ombro, esse kick de adrenalina, esse “ai, ai, ai”, não havia maneira de aparecer. Isto porque, para começar, eu tratava estes zombies por tu, tinha-os conhecido enquanto tomávamos o café antes de começarem as filmagens, enquanto eles ainda eram pessoas normais, antes de passarem pela caracterização, antes do sangue falso e das lentes de contacto brancas. Até sabia os nomes deles. E depois, durante as filmagens, havia sempre atrás da câmera uma equipa de 15 pessoas, e luzes, e carros e até uma mesa com café e bolachinhas. Corria tudo muito bem, neste clima familiar e acolhedor, até que chegou o dia em que o “João”, a minha personagem, é transformada em zombie. Apesar de, no filme, não se ver como é que acontece exactamente o processo de transformação do “João” em zombie, eu perguntei como é que tinha ocorrido. Foi assim: os zombies são, acima de tudo, uns animais sociais que não gostam de se sentir sozinhos e praticam a filosofia de “quantos mais melhor”. E então o que é que eles fazem quando vêm uma pessoa normal? Mordem-lhe. Sim, tipo cão. Abocanham-no e aquilo fica como se fosse uma espécie de raiva – o factor Z de zombie começa a entrar no sistema sanguíneo e, pouco a pouco, os globulozinhos vermelhos e brancos saudáveis e contentes começam a transformar-se numa massa meio acastanhada, e a pessoa passa-se para outro mundo (sem se passar efectivamente para o outro mundo, ou pelo menos de uma forma definitiva, que é isso que são os zombies).
Chegado esse dia da grande metamorfose, eu, como se pode imaginar, estava ansioso.
Já tinha visto o que tinham feito aos outros e estava cheio de vontade de ficar pálido, de cuspir sangue com sabor a morango e de andar como se tivesse cheio de cãibras e outras maleitas musculares. Depois de passar pela maquilhagem, a coisa impressionava – estava com um ar verdadeiramente assustador. Mas o ambiente era tudo menos isso: fartámo-nos de rir, fiz umas selfies, gravei um video para mandar ao meu sobrinho (esse sim, grande fã de zombies) e pronto, lá fui fazer de morto-vivo. Juntei-me a outros mortos-vivos e ACÇÃO! Grrrr, grrrr, grrrr, sangue a pingar, andar de zombie, grrrr, grrrr, grrrr. CORTA! E mais uma e outra e outra vez. Sempre na galhofa, sempre na palhaçada porque, na verdade, o que se via era um grupo de mascarados a brincar ao Halloween. Mas pronto, uma coisa é estarmos ali, acompanhadinhos, entre pares, e outra coisa é ir à casa de banho.
Sozinho.
Primeiro, quando entras, nem dás por nada. Fazes o teu xixi, puxas o autoclismo e vais lavar as mãos. E é neste momento que cometes o maior erro: olhas em frente, para o espelho. AAHH! Outra vez: AAHH! Não estás à espera. São anos e anos a olhar para o espelho, depois de fazer xixi e puxar o autoclismo, em que, quando olhas em frente, te vês a ti, com melhor ou pior cara, mas nunca assim. Nunca aquilo. Aí, tive o medo da minha vida.
Qual filmes de terror, qual “Shining”, qual “O Exorcista”, qual quê. A verdadeira experiência de terror é ser uma personagem de terror e ir sozinho à casa de banho.
A partir daqui, venham os filmes que vierem, façam os efeitos que fizerem, que depois daquele cagaço, estou pronto para tudo. Mas vou passar a ir à casa de banho aos pares, como as meninas.

A curta-metragem “Se o dia chegar” foi realizada pelo muito talentoso Pedro Santasmarinas e estreará em breve em festivais de cinema deste e do outro mundo.

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